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JEANETE M.B RUARO

I. Sobre o autor

Jeanete M.B Ruaro, residente no Rio grande do Sul, participou de diversas coletâneas da Editora Litteris tendo sido agraciada com terceiro lugar em na Antologia E Por Falar em Amor vol II. Participou também em A Poesia do Nascer, lançado em Lisboa, e De Corpo e Alma uma parceria com blogueiros de todo país. Contato: m-born@uol.com.br ou pelo site http://mardapoesia.zip.net.


II. Suas Obras


UMA MARIA SIMPLESMENTE


Maria tinha olhos de choro, quase garoa. Olhos úmidos como daquela vez em que as mãos calejadas e o fôlego ofegante do pai a comprimiam contra o muro. Mãos invasoras aquelas. Mãos que lhe levantaram a saia rota, subiram pelas coxas quase infantis. Mãos fortes dotadas de dedos nodosos que percorreram cada pêlo recém brotado do púbis angelical, e como se não bastasse prepararam o terreno para lançar a lança quente e chamejante para dentro de seu corpo.

Maria gritou. Gritou com a voz enfraquecida de um animal indefeso ferido, quando aquele corpo feito espada entrou, remexeu, e saiu abruptamente de seu corpo.O beijo daquela boca espumante e fedida a cachaça enfraqueceu a ameaça do grito mais forte. Maria chorou então. Chorou com seus olhos de garoa, com a alma, enquanto deslizava as costas muro abaixo até dobrar-se de joelhos no chão. A genuflexão diante do Senhor. ‘Perdoai-o Senhor, ele não sabe o faz’.

O almoço. ‘Maria faz o almoço!’ –grunhia ele sempre. Há muitos meses era assim. A cachaça. O almoço. A cachaça. O catre. A baba fétida. O ronco. A flatulência.

Acordou. -‘Busca mais uma garrafa no porão Maria!’ –Ainda mato este velho!

No porão a luz bruxuleava e um rato corria pondo-se em fuga. -Um rato! Pois o velho comeria um rato amanhã. Um rato cozido. Um rato cozido junto com raticida –Que nojo! Maria acarinhou o ventre. A protuberância fazia-lhe a mão subir ao estômago e a emese como sempre acontecia ultimamente mostrou presença. Não entendia, a coitada, a razão de tantos vômitos e a barriga estufando cada dia um pouco mais. A vizinha dizia que podia ser um verme.- Um tal verme que causa barriga d’água. Mas mexia. Algo lá no fundo lhe dizia de maneira perceptível que ela tinha dois corações pulsando dentro do corpo. Como podia uma coisa dessas? Como? Como podia ter vontade de comer fios cabelo pela manhã, e não ter vontade de comer a farinha e o feijão no almoço? Como podia agora ter vontade de comer o rato inteiro, de cabo a rabo, não fosse pensar no veneno? -O veneno!

Maria tinha decorado todos os mandamentos no catecismo. –NÃO MATARÁS.

-Decorar não é seguir –pensou. Ou é?!

Esgueirou-se até o galpão da casa vizinha. Lá tinha ratos. Muitos. Devia ter iscas de veneno também. Procurou. –Cordeiro de Deus tende piedade de mim.-Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, tende... Encontrou. Da barra franzida do vestido roto fez um saquinho, e encheu com as miraculosas bolinhas. Arrematou com nó e riso. Riu-se das cores variadas. Amarelo, rosa pink, azulão e verde forte. Iguais. Iguaizinhas as cores da última pulseirinha que a mãe tinha lhe dado poucos dias antes de subir ao céu. –Descansará agora para sempre. –dissera a vizinha na ocasião. Queria tanto ter de volta a mãe. Ela sim descobriria o que dava tanto coice dentro da barriga e tanto engodo às refeições. E a mãe se voltasse, nem precisava trabalhar. Podia descansar sempre, ela só queria mesmo a presença dela.

Meio tijolo colocado na frente da entrada da toca. Ela de tocaia. Espancou o rato com a vassoura de carqueja. Sovou, sovou, até amaciar a carne. Sem pelos. Sem cabeça. Sem rabo. No arroz. O raticida como colorau.Um banquete! -‘Vem almoçar...!

PAI NOSSO QUE ESTAIS NO CÉU... ela não estava no céu, estava na terra. Numa terra fedida repleta de homens com ações fétidas! Não tinha coragem de expressar a palavra pai ao pai, quando chamou para o almoço. Tinha a coragem do ódio. Só. No enterro não segurou a alça do caixão. Segurou o ventre, que amanhecera com fisgadas miúdas que lhe revolviam tudo por dentro e avançavam num crescendo diante dos despojos ao longo do dia. O vestido que já colorira de rosa passava agora para o tom vermelho e grená. Sangue gosmento sobre o catre. O grito de Maria agora estalava pela íris. Grito forte de fêmea ao parir.

–Força Maria! O bebê está de cócoras! Mais força! MAIS!

O muro. A mão. A lança. A chaga de Cristo. CRISTO!... O sangue! A tesoura rasgando a carne, o talho precedendo o urro de dor. A rosa entre as coxas desfeita antes de florir. O catre num suga-suga sem dar vazão como fosse um absorvente que ela nunca chegou a usar.

-É um menino rijo de mãos fortes, Maria! Mãos fortes Maria! Mãos fortes...

A frase dita distava-se cada vez mais aos ouvidos entorpecidos de Maria até a neblina densa apagar-lhe os olhos de garoa para sempre. O menino herdou do avô-pai o catre, os traços, e as mãos fortes. O nome herdou de um arcanjo: Gabriel.